Há quase dez anos, um relatório do IBM Institute for Business Value fez uma análise das características e quantificou o conceito de Economia das Coisas, projetando-o como o objetivo final de negócio da Internet das Coisas. Se a IoT era a digitalização do mundo físico, a Economia das Coisas seria a “liquidificação” do mundo físico, no sentido de remover os constrangimentos físicos e a obstrução da informação de certas indústrias e tornar os seus mercados mais maleáveis.
Na altura, a tecnologia ainda não estava no ponto certo; isso mudou radicalmente nos últimos anos. Agora, argumenta a consultora de transformação de negócio da IBM, Agata Slater, a complexidade técnica foi resolvida. O que é preciso é solucionar a hesitação das empresas na criação de um ecossistema maciço em que os dispositivos conectados efetuam transações comerciais entre si sem intervenção humana e com uma partilha significativa de dados, sem que isso constitua um risco de privacidade ou segurança.
A executiva, que falou deste conceito na Vodafone Business Conference, considera que a indústria automóvel e de mobilidade é a que está mais pronta para adotar estas tecnologias. O investimento das construtoras na inteligência das máquinas tem sido muito intensivo, há uma transição em curso para a eletrificação, e o caminho para os carros autónomos fomenta plataformas da Economia das Coisas.
Na sua apresentação, Agata Slater deu o exemplo de um carro elétrico que é capaz de detetar a necessidade de ser recarregado, procurar uma estação de carregamento e pagar de forma autónoma.
A Bosch, que fala de uma “Economia de Tudo”, exemplifica com um carro que paga sozinho pelo estacionamento, mas há outras áreas em que a Economia das Coisas (EoT, na sigla inglesa) demonstra potencial. Num relatório sobre o tema, a Bosch defende que estes princípios podem ser transferidos do automóvel para a indústria da manufatura, sector energético e mercados de consumo. “Em princípio, as interações podem ser entre toda e qualquer coisa”, indica a pesquisa da multinacional.
O que é preciso é começar nalgum lado e o melhor ponto de partida, argumentou Agata Slater na conferência, é uma combinação entre tecnologias inovadoras de Inteligência Artificial, Internet das Coisas e blockchain. É isso que diferencia este momento: nunca foi possível fazer tanto com ferramentas tão acessíveis.
Quais foram os destaques da sua apresentação na conferência e as mensagens que quis transmitir à audiência?
Falei da influência que as tecnologias inovadoras têm umas sobre as outras. Estamos a ouvir falar bastante de tecnologias diferentes de forma individual, há um ‘hype’ significativo à medida que estas tecnologias entram no mercado, mas o que muita gente esquece é que elas resolvem parte de um dado problema. Quando são combinadas, o seu impacto é ainda maior.
Referi especificamente a IoT [Internet das Coisas], IA [Inteligência Artificial] e o blockchain, porque acredito que há uma sinergia muito forte entre estas tecnologias. Vamos ver o seu impacto a crescer, em especial no impulso à digitalização em muitas indústrias.
Dei exemplos de como estas tecnologias podem trabalhar juntas em situações reais para resolver problemas da vida real e quais são as regras em torno da implementação destas tecnologias.
Qual é um bom exemplo de como estas tecnologias podem ser combinadas para criar, por exemplo, novas formas de monetização?
Referi um conceito chamado Economia das Coisas e é aqui que estas tecnologias ganham vida. A Economia das Coisas é um conceito que inclui dispositivos IoT a comunicarem e a fazerem transações de forma autónoma. Se tivermos essa conectividade, chegamos a uma dimensão diversa de dados e isso pode ser convertido em novas soluções e novos produtos, em especial se adicionarmos capacidades IA em cima.
Vejo a mobilidade e [sector] automóvel como uma indústria que está pronta para a adoção destas tecnologias, visto que este sector está a ser disruptivo a ritmo elevado. Dei exemplos de como esta Economia das Coisas pode ganhar vida neste contexto.
Quando é que acredita que um carro elétrico poderá pagar diretamente à estação de carregamento sem intervenção humana?
Em teoria, muito em breve. Digo em teoria porque, tecnicamente, temos a tecnologia para fazer isto funcionar, temos exemplos de soluções no mercado que têm como objetivo alavancar esta combinação de blockchain, IA e IoT para tornar isso possível. Uma delas foi criada e está a ser facilitada pela Vodafone, chama-se Digital Asset Broker. Por isso, vamos ver ofertas destas no mercado muito em breve, algo como Economia-das-Coisas-como-serviço.
Quais são os obstáculos?
Construir estas economias não é fácil. Requer um efeito de rede e que muitos ‘stakeholders’ diferentes se juntem e partilhem dados abertamente. Muitas empresas têm relutância em fazer isso, porque ao longo dos anos habituaram-se a um modelo diferente.
Creio que ainda não estamos lá, não por razões técnicas mas por motivos de negócio. Porque é muito difícil integrar estes diferentes players num ecossistema como esse.
No que toca ao blockchain, quais são as principais vantagens de o adicionar a esta equação, visto que a IA e IoT não precisam necessariamente disso?
É verdade, e o blockchain tem definitivamente sido esquecido agora que vemos a Inteligência Artificial a ser tão popular. Há aqui um ‘hype’. Há uns anos, esse ‘hype’ era sobre o blockchain. Houve um certo desapontamento em relação a ele. Mas, como eu disse, cada uma destas tecnologias tem uma função separada, um papel destacado.
Com a Economia das Coisas e em combinação com a IA e o IoT, o papel do blockchain é adicionar uma camada de confiança em torno da partilha de dados. O blockchain ajuda-nos a construir registos imutáveis em torno dos dados e isso não só adiciona uma camada de transparência como também facilita as transações dentro de um ecossistema de dispositivos digitais. Isto significa que o blockchain pode ajudar a criar novos trâmites de pagamentos para estes novos tipos de economias digitais.
Tal como disse, a IoT e a IA não precisam de blockchain, mas creio que o blockchain adiciona esse valor da transparência e fiabilidade dos dados. Há muitos pontos de interrogação neste espaço da IA e à medida que mais empresas adotam esta tecnologia, mais perguntas vão aparecer em torno da transparência, confiabilidade dos dados e ter mais conhecimento acerca do que está realmente a acontecer por detrás da tecnologia que estamos agora começar a descobrir.
É isso que a União Europeia quer endereçar com o AI Act, transparência, segurança, privacidade. Acredita que é a abordagem certa, visto que as empresas europeias terão de cumprir regulamentos?
Pessoalmente, acredito que a regulação é uma coisa boa. Estamos a aprender isso da forma mais difícil no espaço do blockchain, em que as empresas demonstram relutância a entrar no espaço. Sou uma grande fã da regulação. É claro, têm de ser introduzidas com muita ponderação e de forma a não abrandar o ritmo de inovação, o que é muito difícil de fazer.
A UE está a dar os primeiros passos para a regulação do espaço da IA, começando pela identificação de áreas de alto risco. São as situações em que a IA pode representar ameaças à nossa segurança como indivíduos. Por exemplo, no policiamento preditivo ou no uso de imagens faciais extraídas de câmaras de segurança para fins não autorizados. Esse é o primeiro passo. Mas claro, tem de haver um equilíbrio entre regular e inovar.
Considera que um país pequeno como Portugal pode beneficiar mais com o avanço da IA ou enfrentar mais desafios?
Penso que toda a gente pode beneficiar destas inovações. Depende de qual a abordagem que tomamos. Queremos estar na linha da frente desta inovação e saltar de cabeça e começar a desenvolver soluções, experimentar, inovar, construir laboratórios tecnológicos que ajudam a testar este espaço? Nem todas as empresas e nem todos os países estão posicionados de forma igual para encarnar esse papel.
Mas penso que mais soluções vão emergir no mercado, tal como a DAB, que permitem usar estas tecnologias como serviços. Por isso, mesmo que uma empresa não tenha o know-how tecnológico ou os recursos certos para entrar neste espaço de cabeça, há soluções a serem modeladas que vão permitir que estas empresas façam parte da inovação sem terem de desenvolver estas soluções de raiz.
Há espaço para toda a gente nesta área. Só que requer o tipo certo de estratégia e um ‘roadmap’ de longo prazo, de aonde queremos chegar com essa tecnologia.
Ana Rita Guerra